quinta-feira, 12 de julho de 2012

Pássaro, sou eu.

24 de dezembro de 2011.

Éramos eu e Zé, meu primo favorito, sentados na mureta. Olhávamos a casa da frente só porque era bonita. Branquinha de janelas azuis com cortinas de renda que protestavam toda vez que o vento resolvia chicoteá-las. Zé sonhava em ter uma casa daquelas um dia, uma dessas casas dos sonhos, de dois andares, um carro com motorista e um cachorro que combinasse com aquela riqueza toda.
Nós não éramos pobres, mas estávamos longe de ricos, se bem me lembro. Aquele era o primeiro natal em que a gente teria uma ceia com peru, pernil e frutas cristalizadas. Eu nunca tinha comido, mas já achava elas meio nojentas. E tudo isso só ia acontecer graças à solidão do patrão da minha mãe. Era um viúvo na casa dos 70 que não tinha tido filhos. Ele só queria um natal em família, depois de alguns anos de luto. Mamãe arrastou todo mundo pra casa do velho, fez ceia, comprou presente e colocou Muddy Waters no rádio. Seu João gostava de Muddy Waters. Ele dizia que aquecia o coração ouvir aquelas músicas da juventude dele. Eu só sentia prazer quando sentava tão perto do rádio que podia sentir a vibração no coraçãozinho miúdo que eu tinha aos 8 anos.

- Prima, olha ali no segundo andar. - Levei os olhos pra cima e esperei a explicação.- Tá vendo a menina ali na segunda janela?
- Tô. Mas e daí?
- O que aconteceu com ela?
- Mamãe disse que ela tá com um negócio chamado dor de cotovelo.
- Dor de cotovelo? O que é isso?
- Sei lá. Só sei que é o que ela tem. Mas eu acho que ela tá é com saudade de um garoto que sempre vinha aqui de bicicleta.
- O que dor de cotovelo e um garoto tem em comum?
- Ele deve ter dado um daqueles beliscos que minha mãe dá em mim quando eu desobedeço.

Zé riu. Riu tão alto que a menina olhou pra gente e deu um meio sorriso. Hoje, vinte anos depois, eu sei que tipo de sorriso é aquele. Um sorriso esperançoso, um sorriso pra inocência que criança transmite. Ela apoiou os cotovelos na janela e o rosto nas mãos. Deu pra ver o nariz vermelho e o cabelo amarrotado de quem não pega num pente há algum tempo.

- Se ela tá com dor de cotovelos, por que tá piorando tudo?
- Ela deve ser meio maluca.- Cochichei.
- Tá com cara de espera.
- Esperando a dor passar?
- Deixa de ser burra, garota. Deve ser outra coisa.- Zé tinha uns 11 anos, era mais esperto.
- É coração partido.- Chegou Tio Bento e se encostou na mureta bem entre mim e Zé.
- Eita. Mas esse negócio de dor no cotovelo é sério.- Fiquei impressionada facilmente.

Daí o Tio explicou que coração partido é quando um amor não dá certo. Falou que amor é assim mesmo, que às vezes a gente entrega o coração pra alguém e esse alguém deixa cair, aperta demais ou simplesmente não segura do jeito certo. O coração é feito um passarinho, se apertar muito machuca o bichinho e pode até matar. Mas se a gente abrir demais as mãos, o passarinho quer voar pra muito longe e se perde da gente.
Zé achou besteira essa coisa de passarinho. Disse que amor é o que ele sentia pelo Botafogo.
Fiquei com Tio Bento enquanto ele me contava do rapaz que tinha voltado pra casa, mas não pra ela. Na verdade ele tinha voltado com uma outra garota pra casa dele, tinha casado e tudo isso sem nem dar uma explicação pra ela. Deu dó. Lembrei de quando minha irmã pegou mina boneca, esqueceu na escola e nem pediu desculpas. Deu uma dorzinha no coração quando mamãe veio explicar o que acontecera.

Os anos passaram, a chorosa da frente se mudou, seu João morreu e a casa dele virou herança pra mamãe. Cresci ali, me formei ali e te conheci na esquina graças a um encontrão criado pelo destino. Agora te escrevo essa carta com recomendações e um pequeno anexo. Escrevo pra lhe pedir que aceite meu coração, mas que não o aperte. Não me faça mal, não me deixe sozinha por muito tempo e que não tome um rumo muito distante daquele que penso pra nós. Cuide bem do meu canário vermelho que faço gosto em lhe dar e o deixe confortável. Não o deixe muito livre, ele é curioso e pouco experiente nessa coisa de amor. Não o solte porque eu gosto do laço que vem do teu olhar, do telefonema e da risada que me vem aos lábios quando você desponta na esquina antes da festa à fantasia com aquela roupa de retalhos e os passos trôpegos de mocidade.
Entenda, meu bem. Só estou lhe entregando o que você conquistou quando me deu aquele primeiro beijo na testa e me deixou à porta de casa num diazinho nublado que não guardava promessas. Você não é a metade que me completa, nem de longe a luz que ajeita meu caminhar. Você é meus pés, minha alegria, meu sorriso inocente e o pensamento repetido dezenas de vezes ao longo dos dias.
Ande. Tome! Guarde ao lado do teu porque, afinal, ele desaprendeu a bater quando te vi e agora precisa do ensino que vem do teu peito. Me tome, tome minhas escolhas e guie nosso futuro com carinho e pressão exatos. Prometo ser um pássaro obediente e cantar o dia todo, só pra te ver orgulhoso e seguro de amor certo que tenho pra lhe oferecer.
Serei o pássaro da manhã pra lhe acordar com cantigas doces, a andorinha pra te guiar a tarde e a esperta coruja pra vigiar teu sonho. Ai, meu bem! Serei o que quiseres, se me amares e aceitares hoje e sempre.





Com todo meu amor.
Rayana


P.S.: A foto não é minha.

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